A Comissão de Cidadania da Assembleia Legislativa (Ales) realizou nesta quinta-feira (17) audiência pública no formato híbrido para tratar da repactuação do acordo referente ao rompimento da barragem de Fundão, ocorrido em novembro de 2015, em Mariana (MG). A tragédia vitimou 19 pessoas - entre elas uma grávida - e traz, até hoje, consequências ambientais, sanitárias e econômicas para milhares de pessoas nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
“Essas duas imagens: a do rompimento e a da chegada da lama no Espírito Santo nós não podemos esquecer. Infelizmente, seis anos depois, as coisas não foram resolvidas, nem aqui no início e nem aí no final. Aqui, por exemplo, em Bento Rodrigues, não foram construídas as casas na comunidade que foi devastada pela lama, a primeira delas, que estava logo abaixo da barragem”, disse o presidente da Comissão Externa da Câmara Federal destinada a acompanhar e fiscalizar a repactuação do acordo, deputado Rogério Correia (PT-MG).
O parlamentar, que falou de Minas Gerais por videoconferência, apontou consequências que perduram até os dias atuais. “(...) recentemente, com as enchentes aqui em Minas Gerais, nós vimos o sofrimento retornar, porque a lama que foi removida do leito e das margens do rio adentrou os municípios novamente, nas casas das pessoas. E não é uma lama comum do rio, é uma lama com minério e isso trouxe de novo todos aqueles prejuízos que nós vimos serem causados no momento da ruptura”, denunciou.
Fundação Renova
O deputado criticou a atuação da Fundação Renova, responsável pela reparação dos impactos causados pelo rompimento da barragem. “Seis anos não foram suficientes para que a Vale fizesse essa repactuação pelo crime que cometeu. A forma que foi feita, através da Renova, nada solucionou. A Renova virou um braço da própria Vale, que faz aqui o que a empresa determina e não aquilo que os atingidos precisam. Portanto, esse modelo não serve”, opinou.
Ainda sobre a Fundação Renova, a defensora pública do Espírito Santo Mariana Andrade Sobral apresentou dados de nota técnica do Comitê Interfederativo (CIF). O levantamento constata que somente 39% das 25 mil pessoas que solicitaram cadastramento requerendo reparação pelo crime no Espírito Santo conseguiram se cadastrar e apenas 31% dos quase 10 mil cadastrados foram indenizados.
“Falar do Rio Doce hoje, seis anos depois, é como se a gente estivesse repetindo ano a ano os problemas que já foram alertados desde o primeiro acordo. Ninguém acreditou de verdade que a privatização de um desastre iria dar certo. Infelizmente foi necessário criar um precedente desse tamanho, envolvendo diversas vidas, pra gente ter certeza, não deu certo. Tanto que Brumadinho a gente não teve Fundação Renova”, comparou.
Esses dados foram confirmados por quem vive essa realidade. A pescadora Joselita Maria de Jesus, de Colatina, afirmou que os pescadores sofrem pressão por parte da Renova para que não ingressem na Justiça pedindo indenização pelo tempo que estão sem poder viver da pesca. “Será que com R$ 93 mil dá pra sobreviver por cinco ou dez anos?”, questionou.
“Quem paga aluguel, quem paga água, energia, tem filho pra sustentar, tem gasto com saúde, porque depois dessa tragédia muita gente adoeceu, muita gente já foi. Muitos estão doentes por conta dessa água, que não está boa para consumo, os peixes estão contaminados. As pessoas não podem pescar porque não está liberado, embora a Renova diga que já pode consumir a água e os peixes, mas se o pescador vai lá pescar vai vender pra quem? Não tem ninguém pra comprar, porque ninguém confia na qualidade do peixe”, desabafou a pescadora.
Representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Heider Boza apontou diferentes segmentos que foram impactados de formas diversas, direta ou indiretamente. “O que a gente do movimento tenta fazer é juntar as demandas em comum para fortalecer a luta coletiva e, com as diferenças, tentar uma reparação justa e igual para todo mundo”, falou.
Dentre os que mais sofrem com o pós-desastre, além das famílias enlutadas, são os pescadores, que tiveram suas rendas completamente impactadas. O MAB apresentou dados que estão de acordo com levantamentos já expostos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), que apontam uma queda de 72% na renda desses trabalhadores. A renda média desses pescadores caiu de R$ 1,5 mil, em 2015, para cerca de R$ 430 após o rompimento.
Vale
O deputado Rogério Correia chamou a atenção para os altos lucros da mineradora Vale diante da falta de uma reparação justa pelo crime. “A Vale, aliás, que este ano está comemorando R$ 141 bilhões de lucro, um lucro astronômico. Quase tudo será distribuído para os acionistas. Não é possível que isso possa ser feito diante dos nossos olhos sem que ela pague pelos crimes que cometeram em Mariana e em Brumadinho. É preciso ter aí um governo forte, um braço forte da Justiça e do Parlamento, para exigir que essas injustiças não aconteçam mais”.
Representando o Sindicato dos Ferroviários, Wesley Selante Elói expôs outro lado da tragédia. Ele afirmou que, desde o ocorrido, funcionários da Vale têm sofrido preconceito por parte da sociedade, como se eles fossem culpados pelo crime. O sindicalista, porém, afirmou que a pior parte da retaliação vem de dentro da própria empresa.
“Hoje esses funcionários são ameaçados dentro da empresa, são humilhados, são demitidos da empresa, que hoje para poder pagar e indenizar essas pessoas, não tira dos lucros e dividendos de seus acionistas, muito menos da sua diretoria executiva. Estes custos estão sendo pagos pela mão de obra e exploração de seus funcionários, dentro dos muros da empresa”, denunciou.
Repactuação
O conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Luiz Fernando Bandeira de Mello, responsável por mediar as discussões sobre o novo pacto, explicou que um dos principais pleitos dos atingidos pelo rompimento em Mariana é fazer com que um aporte das indenizações seja colocado à disposição dos impactados, sem a intervenção da Renova.
Ele explicou que essa medida está sendo adotada no caso de Brumadinho e acredita que as partes irão encontrar um entendimento. “A nossa disposição é construir um acordo que atenda a esses pleitos, e eu acredito, pelo que tenho sentido nesse momento da repactuação, que existe disposição para atender isso, tanto por parte do setor privado, quanto por parte do poder público”, afirmou Bandeira de Mello.
O deputado federal Padre João (PT-MG), porém, criticou a morosidade do processo. “É lamentável o setor do Judiciário. Uma ação judicial pode demorar 10, 15 anos, e vai protelando, infelizmente. Por isso a necessidade dos acordos coletivos, de enxergar os projetos de trabalho e renda para a reativação econômica. São pessoas que estão com restrições econômicas até hoje, pescadores, agricultores familiares, a limpeza da calha do Rio Doce, ou então cada enchente que vier vai trazer de novo a lama”, alertou.
Diligências
O relator da Comissão Externa destinada a acompanhar e fiscalizar a repactuação do acordo referente ao rompimento da barragem de Fundão é o deputado federal Helder Salomão (PT-ES). O parlamentar disse que foi formado um grupo que fará, junto da comissão, diligências nos locais impactados, tanto no Espírito Santo como em Minas Gerais, nesta e na próxima semana.
“Nós temos a tarefa de ouvir e nas visitas constatar aquilo que infelizmente nós já constatamos várias vezes em outras diligências. Metais pesados presentes nas águas, que ocasionaram problemas de saúde gravíssimos, assoreamento dos rios, enfim, nós temos inúmeros impactos que mostram que os problemas decorrentes do crime ambiental de Mariana estão muito presentes no nosso território capixaba e também em Minas Gerais”, destacou.
Reparação
O relator frisou que a reparação tem que observar os aspectos ambientais, econômicos e sociais, e deve ser paga de forma direta aos atingidos. “Nós não podemos pensar em uma reparação que não tenha a participação social. A nossa grande preocupação nesse processo de repactuação é garantir que haja a participação da sociedade na discussão. Os atingidos precisam ser atores importantes nesse processo de debate”, cobrou.
O parlamentar é a favor de uma reparação coletiva. “A tentativa de fazer a reparação individual é para enfraquecer a luta dos atingidos e do movimento social”, avaliou. “O auxílio financeiro precisa ser continuado, nós já sabemos de todos os problemas ocorridos nesse período”, complementou o deputado, cobrando também que sejam realizados investimentos nas áreas impactadas.
Conclusão
A conclusão dos trabalhos ficou por conta da deputada Iriny Lopes (PT). A proponente da audiência pública responsabilizou as empresas pelo crime ambiental, mas cobrou uma atuação mais firme do governo do Estado na defesa dos impactados pela tragédia. A parlamentar também fez uma ressalva sobre a possibilidade de rompimentos como os de Mariana e Brumadinho se repetirem em outras barragens.
“A gente sabe que lá no estado de Minas Gerais tem pelo menos umas 15 (barragens) que estão em situação precaríssima. Nós já tivemos uma segunda depois de Mariana, sendo que nem a primeira foi resolvida. Foi criminoso não responsabilizar diretamente as empresas pela reparação. E a reparação é longa, pra mim é uma reparação de um século, pelo menos”, concluiu.
Com informações do Setor de Comunicação da Assembleia Legislativa do Espírito Santo